A Inquisição de Évora
por António Borges Coelho
Quando olhamos o lugar sagrado da acrópole, ladeado pela massa formidável da Sé e a leveza do Templo Romano, quando abrirmos os olhos num estremecimento ante a grandeza monumental do passado, estamos longe de imaginar o medo, a superstição, a glória assassina e os passos, por vezes de extraordinária grandeza, dos condenados ao último suplício.
A Norte da praça, a Inquisição Velha encostava os seus cárceres ao Templo Romano. Olhava o Paço do Arcebispo e a Sé. Estendia-se mais tarde a Poente, ocupando casas compradas ao conde da Vidigueira, ainda hoje marcadas pelas armas do Santo Oficio. A legenda Judca causam tuam circundava a espada e o ramo de oliveira. Em 1636, o arquitecto Mateus do Couto redefiniu o espaço. Uma parte era ocupada pelo palácio inquisitorial, morada individualizada dos três inquisidores; na outra, erguiam-se as duas salas do despacho, os cárceres, os cárceres de vigia, a sala de tortura, não visível na planta mas onde se aplicavam os diferentes tratos, particular-mente o do potro e o da polé, e ainda os cárceres da penitência. Restam uma imponente sala do despacho, diferentes espaços reaproveitados, o brasão e outros símbolos, cerca de catorze mil processos, livros de receitas e despesas, correspondência diversa, cadernos do promotor, livros de denúncias.
A Inquisição Portuguesa nasceu legalmente em Évora no ano de 1536, legitimada pelo papa, apadrinhada pelo rei D. João III e pelos infantes seus irmãos que sucessivamente ocuparam a mitra da cidade, o cardeal Afonso e o futuro cardeal e inquisidor-geral D. Henrique. E nesta cidade se organizou o primeiro organismo dirigente, o chamado Conselho das Cousas da Fé, onde pontificava o doutor em Cânones pela Universidade de Salamanca, fundador da Inquisição de Lisboa e futuro arcebispo de Évora, doutor João de Melo. Mas, como tribunal autónomo, a Inquisição de Évora nasce a 5 de Setembro de 1541 com a posse do seu primeiro inquisidor, o temível licenciado Pedro Álvares de Paredes, e é extinta pelas Cortes Constituintes por decreto de 31 de Março, publicado no Diário das Cortes de 2 de Abril de 1821.
Juntamente com as inquisições de Coimbra e de Lisboa, a Inquisição de Évora foi um tribunal dito da fé que sujeitava à sua jurisdição todos os crentes, incluído o rei, a quem por vezes ameaçou de excomunhão. Zelava pela fé tridentina [1] e pela limpeza de sangue. A sua presa privilegiada eram os cristãos-novos. Opunha-se tenazmente à sua fusão com os cristãos-velhos, medindo continuamente o sangue das vítimas e contrariando os casamentos mistos. O seu santo ofício consistia em vigiar, escutar, ler, prender, interrogar, submeter a tortura, julgar e condenar sem apelo nem agravo os chamados heréticos, os relapsos, os sodomitas, os feiticeiros, os bígamos, os solicitantes, os ateus. Só prestava contas ao Conselho Geral e ao Inquisidor-Geral. Todas as justiças ficavam sujeitas ao seu poder que, por intermédio do Conselho Geral e das outras Inquisições, cobria o território nacional e o império marítimo.
O seu aparelho era formado por três inquisidores com preeminência do mais antigo, o da primeira cadeira, por deputados, promotor, notário, fiscal, meirinho [2], alcaide e guardas dos cárceres. No pessoal eventual, incluíam-se o médico, a parteira, o barbeiro, o pintor das efígies dos condenados à morte, os padres que eram incumbidos de ajudar, nos últimos momentos, os condenados a confessar ou a morrer. A acrescentar a estes funcionários da sede, espalhavam-se pelas principais cidades e vilas os comissários ou delegados locais do Santo Oficio, escolhidos entre os clérigos mais eminentes, os familiares leigos que asseguravam com a sua espada as prisões e a ordem no auto da fé, os qualificadores ou doutores universitários que analisavam as proposições suspeitas de heresia.
No dia 13 de Janeiro de 1729, D. João V visitou incógnito, em companhia do físico-mor, os cárceres da Inquisição de Évora. Entrou pela porta secreta do alcaide dos cárceres, assistiu ao interrogatório de um feiticeiro, examinou os cárceres de vigia, entrou na sala do despacho, olhou das janelas o palácio do arcebispo e penetrou depois, à luz das velas, na sala do "secreto". A 6 de Fevereiro, no seu regresso da fronteira, o rei visitou de novo os cárceres e na sala da tortura um dos guardas sujeitou-se simuladamente aos tratos de polé e às correias do potro.
Não faltaram conflitos a minar o entendimento entre as quatro grandes instituições que marcavam a vida da cidade: a Sé, a Universidade, a Inquisição e o Concelho. A Inquisição e a Sé estavam frente a frente. O Concelho tinha a sua sede num dos extremos da Praça Grande ou Praça do Giraldo onde se desenrolavam os autos da fé. A Universidade marcava um espaço junto da antiga alcáçova [3] . Na coexistência nem sempre pacífica dos poderes, os arcebispos furtavam-se a ir ao auto da fé por questões de preeminência. Queriam uma cadeira especial que os inquisidores, administradores do acto, negavam. Mas a ligação à Sé era orgânica: quase todos os inquisidores acumulavam o seu cargo com os de cónego da Sé e muitos deles subiram às mitras, designadamente à mitra de Évora, considerada nos meados do século XVIII mais rendosa que a Sé de Braga e a segunda das Hespanhas.
Também não faltaram questões com a Universidade que disponibilizava os seus doutores para a pregação nos autos da fé e para o acompanhamento final dos presos. As questões eram ainda de preeminência. Quem devia abastecer-se primeiro de carne no mercado: os criados dos inquisidores ou os da Universidade? Num conflito célebre entre a Universidade e a Inquisição, deflagrado em 1643, D. João IV decidiu contra a Universidade, possuidora de antigos privilégios e partidária da Restauração, e a favor da Inquisição que contra ele conspirava e prendera o padre jesuíta Francisco Pinheiro, lente de Teologia.
A tensão entre a Inquisição e a cidade explodiu algumas vezes em violência. Um dos momentos de maior tensão viveu-se na última década do século XVI quando os inquisidores prenderam boa parte dos mercadores eborenses da Praça Grande. Para escárnio das famílias, penduravam-se na igreja de S. Antão as efígies dos condenados à morte. Mas os inquisidores queixavam-se que alguém as destruía pela calada ao mesmo tempo que os cristãos-novos se recusavam a ser fregueses de S. Antão.
Numa sociedade mortificada por escrúpulos de consciência, sempre desconfiada dos seus pensamentos e dos pensamentos e das práticas dos vizinhos, o tribunal alimentava-se quase exclusivamente da denúncia. E toda a sua actividade interna consistia em fabricar denúncias, verdadeiras e falsas, usando as longas prisões sem culpa formada, as ciladas, a coacção psicológica, a tortura. O momento mais alto era o do auto da fé anual, a «Testa» que por vezes se prolongava pelo dia inteiro e onde eram «reconciliados» ou garrotados e queimados os hereges relapsos e negativos, quase sempre cristãos-novos.
O lugar de deputado e de inquisidor abria as portas do verdadeiro cursus honorum que desembocava nas mais altas prebendas da Igreja e do Estado: conezias [4] , mitras, reitorados da Universidade, Conselho de Estado (por inerência, o membro do Conselho Geral tornava-se membro do Conselho de Estado), Mesa da Consciência e Ordens. Pelos quadros da Inquisição de Évora passaram doutores e mestres em teologia, doutores, licenciados e bacharéis em direito canónico ou em ambos os direitos. Entre eles, o teólogo dominicano Frei Jerónimo de Azambuja que participou no Concílio de Trento, e Marcos Teixeira, cónego doutoral da Sé de Évora, futuro bispo do Brasil que comandou a reconquista da Baía tomada pelos holandeses em 1624.
O chamado distrito onde a Inquisição de Évora exercia a sua actividade abarcava todo o sul do Tejo com excepção da península do Setúbal. Nos seus primórdios recebeu presos de Trás-os-Montes e da Beira. As cidades e vilas mais castigadas foram Beja, Évora, Elvas, Montemor-o-Novo, Campo Maior, Arraiolos, Viçosa, Estremoz, Serpa, Faro. Os períodos de maior rigor ocorreram nos governos de Filipe II e IV e após a morte de D. João IV. E só depois do governo do Marquês de Pombal, o pedreiro livre substitui o cristão-novo.
Entre as vítimas conta-se o desembargador e humanista Gil Vaz Bugalho, cristão-velho, amigo de linguistas de origem hebraica, doutos no latim, no hebraico e no caldeu, tradutor para linguagem dalguns livros do Velho Testamento e queimado em 1551. Frei António de Abrunhosa, franciscano natural de Serpa, parte de cristão-novo e cristão no coração, assistiu à prisão da mãe, das irmãs e sofreu ele próprio a perseguição dos seus conventuais e do Santo Oficio. Manuel Casco de Farelais, aluno da Universidade e fidalgo cristão-novo, enviou da prisão um Padre Nosso em verso antes de ser queimado em 1629. Em 1613 um cristão-novo denunciava alentejanos que judaizavam em Hamburgo e Amesterdão. Entre eles contavam-se o licenciado Francisco da Rosa, dos Rosas de Beja, Manuel Gomes de Évora (Jacob Abenatar), Álvaro de Castro, dos Namias de Beja, Melchior Mendes de Elvas (Abraão Franco), Nuno Bocarro (Jacob Pardo), dos Bocarros de Beja, e outros. Os fugitivos diminuíam as forças de Portugal e alimentavam as da Holanda e doutros países do Norte.
António Costa Lobo, um dos cidadãos mais ricos de Beja, onze anos preso sem culpa formada e queimado em 1629, afirmava que o Santo Ofício era um tribunal do diabo. Que os inquisidores vinham da Beira julgar as consciências alheias e, em vez de as salvarem, as metiam no inferno.
Durante quase três séculos muitos dos homens mais poderosos das cidades e das vilas a Sul do Tejo passaram pelos cárceres e sofreram o confisco dos seus bens. De tal modo que, já em 1630, o inquisidor-geral D. Fernando de Castro escrevia que se o reino estava menos rico em compensação estava mais católico. Mas no fim das contas, sem somar o sofrimento e a humilhação, sem contar a «desonra das gerações», nas palavras de frei António de Abrunhosa, podemos afirmar que o Alentejo e o Algarve ficaram menos católicos e mais pobres.
Notas de resistir.info:
[1] Fé tridentina: disposições aprovadas no Concílio de Trento (1564) para combater a reforma protestante.
[2] Meirinho: oficial de diligências.
[3] Alcáçova: pequena fortaleza.
[4] Conezias: rendas dos cónegos.
António Borges Coelho (Murça, 1928), historiador e poeta português, catedrático jubilado da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tem vastos títulos publicados sobre as áreas medieval e começos da Idade Moderna; a sua principal obra será, porventura, o Portugal na Espanha Árabe, colectânea de textos árabes sobre a ocupação muçulmana daquilo que viria a ser o território de Portugal.
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